Por Kalliane Amorim

Você já se perguntou como é que em culturas tão distantes e diferentes, espalhadas por todo o mundo, existem histórias como Chapeuzinho Vermelho, O patinho feio, João e Maria, entre tantas outras, apenas com algumas variações?

Estudos arqueológicos e filológicos, amparados por pesquisas de áreas afins, situam as raízes dos contos populares, comuns em culturas geograficamente distantes, na tradição oriental. Coelho (2012, p. 36, grifos da autora) afirma que essa tradição oriental “vai se fundir, através dos séculos, com a fonte latina (greco-romana) e com a fonte céltico-bretã (na qual nasceram as fadas)”.

Basicamente, os ensinamentos religiosos foram transformados em fábulas, apólogos e parábolas, e difundidos por pregadores budistas de povoado em povoado. Dessa maneira, espalharam-se pelos continentes, amalgamando-se às culturas de outros povos e ganhando novas roupagens até chegarem aos dias atuais. Sua preservação ao longo do tempo deve-se, provavelmente, à natureza simbólica da linguagem usada: situações e lições da vida real revestem-se de um modo singular de narrar, modo plurissignificativo, que convida o ouvinte/leitor a participar da história e dela extrair uma verdade que transcende o tempo e o espaço, capaz de ressignificar suas experiências de vida.

Os contos maravilhosos são caracterizados pela presença de personagens, lugares e tempos não determinados historicamente, e por uma forma que, embora possa ser recontada por diversos autores, permanece quase que intacta através dos tempos. No entanto, como veremos adiante, a noção do maravilhoso não se restringe aos chamados contos de fadas: no trato com o sobrenatural, o conto maravilhoso transpõe as fronteiras dos contos de fadas, apresentando elementos diversificados, e destinam-se a todo o público, não somente ao infantil, como tradicionalmente se pensa (TODOROV, 2008).

O folclorista russo Propp (2001), no início do século XX, desenvolveu um estudo pioneiro a fim de definir o conto maravilhoso a partir de elementos e ações constantes das personagens desse tipo de história. Em seus estudos, restritos à análise de cem contos da tradição russa, ele verifica que ações iguais são atribuídas a personagens diferentes, ou seja, em diferentes histórias, as personagens desenvolvem as mesmas ações ou funções. O que muda de um conto para outro são os nomes das personagens, o meio em que acontece a trama narrativa, os recursos utilizados para engendrar encantamentos, porém as ações são frequentemente as mesmas.

Em suas pesquisas, Propp (2001) reconhece esse gênero como expressão da própria vida: sua estrutura não seria mais do que o reflexo da condição humana sempre em transformação, enfrentando obstáculos em busca de uma autorrealização nos diversos âmbitos da vida. As funções identificadas pelo pesquisador relacionar-se-iam, assim, com as vivências comuns aos seres humanos, por isso esses contos teriam sobrevivido durante milênios, seguindo uma tradição oral, que possibilitava o surgimento de variantes conforme as épocas e os lugares em que circulavam. Coelho (2012, p. 119-120, grifos da autora), relaciona as constantes dos contos maravilhosos às constantes da condição humana, perceptíveis em todos os contextos socioculturais:

1. situação de crise ou mudança: é natural que na vida real todo ser humano viva contínuas situações de mudança ou de crise, pois do nascimento à morte, passamos por muitas transformações, desafios e provas;
2. desígnio: todo ser humano tem (ou deve ter) suas aspirações, seu ideal, seu “desígnio” a ser atingido na vida, em busca de sua autorrealização;
3. viagem: basicamente, a luta pela autorrealização trava-se fora de casa, no corpo-a-corpo do eu com o mundo exterior, com outros;
4. obstáculos: são as inevitáveis dificuldades que se interpõem entre o eu e seu caminho para a autorrealização;
5. mediação: são os auxílios que, via de regra, o eu recebe para poder avançar em seus caminhos;
6. conquista: este deveria ser o desenlace feliz para a autorrealização desejada pelo eu, como acontece sempre nos contos de fadas e deveria acontecer também na vida real.

É importante salientar que os contos maravilhosos, especialmente na contemporaneidade, nem sempre iniciam com o “era uma vez…” e finalizam com o “felizes para sempre”. Na verdade, como aponta Todorov (2008, p. 30), o conto de fadas não é mais que uma das variedades do maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais não provocam nele surpresa alguma: nem o sonho que dura cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas (para não citar mais que alguns elementos dos contos de Perrault). O que distingue o conto de fadas é uma certa escritura, não o status do sobrenatural.

Para o estudioso russo, é a aceitação natural do sobrenatural que caracteriza o conto maravilhoso. Roas (2014, p. 31), ao definir o sobrenatural como tudo aquilo que “transgride as leis que organizam o mundo real, aquilo que não é explicável, que não existe, de acordo com essas mesmas leis”, enfatiza que o maravilhoso reside exatamente na não ruptura dos esquemas da realidade, isto é, a aparição de entidades como fadas, duendes e bruxas, a ambientação da história em espaços diferentes do universo do leitor não causam estranheza alguma, porque tudo é possível. Nenhum personagem questiona os acontecimentos que irrompem em sua existência: um feitiço, uma metamorfose, um milagre, nada desestabiliza ou suscita dúvidas nas personagens, já que naquela realidade em que vivem, todas essas situações são aceitáveis. O leitor do maravilhoso, ao admitir a verossimilhança dessas narrativas, adentra, por assim dizer, nesse universo encantado e também não questiona os acontecimentos que ali ocorrem.

Um bom exemplo de escrita de contos maravilhosos na atualidade encontra-se na obra da escritora ítalo-brasileira Marina Colasanti. Em entrevista recente (MARINA COLASANTI…, 2015), ela afirma que os contos maravilhosos

são textos verticais, são textos que podem ter variantes de leitura infinitas e que, portanto, se adaptam a qualquer idade. São textos que estão ligados, historicamente e pelo seu próprio gênero, à essência do ser humano, que estão ligados aos sentimentos mais fundos: o amor, o ciúme, a inveja, o medo, a morte […] É o diálogo do hoje e do antes, do hoje e do amanhã, do hoje aqui e do hoje em todo lugar. São contos de muito significado e para qualquer idade, certamente.

O conceito de maravilhoso, assim, transcende a noção de conto de fadas, com seus elementos tradicionais. Não exige final feliz, mas demanda a presença do sobrenatural encarado como natural dentro de seu universo narrativo, aliado a uma linguagem metafórica responsável por trazer à tona experiências humanas simbolizadas em mitos e arquétipos. Além disso, como todo conto, carece de uma unidade dramática, independentemente de sua extensão – aliás, a extensão de um conto é um elemento irrelevante para sua caracterização. Como assinala Julio Cortázar, em entrevista concedida a Bermejo (2002, p. 28), o conto é “uma coisa que tem um ciclo perfeito e implacável. Uma coisa que começa e termina tão satisfatoriamente como uma esfera: nenhuma molécula pode estar fora de seus limites precisos”, do que se depreende a importância que deve ser dada a todos os elementos da narrativa – personagens, espaço, tempo, foco narrativo, entre outros – e do sentido, necessário, que cada um apresenta para o desenvolvimento da história.